sexta-feira, agosto 03, 2012

" Eu também existo nas minhas distrações..."

«Nunca altero o que escrevi», disse-me uma vez o meu mestre Caeiro. «Se o escrevi assim é porque o senti assim, e nada tem para o caso que eu hoje sinta de um modo diferente. Os meus poemas contradizem-se muitas vezes, bem sei, mas que importa, se eu me não contradigo? Há coisas nalguns dos meus poemas, sabe?, que eu não seria capaz de escrever agora, em ocasião nenhuma. Mas escrevi-as então, e essa é que foi a ocasião em que as escrevi. Por isso ficam como estão.»

E, a meu pedido, exemplificou:

«Olhe, por exemplo, várias coisas no poema sobre o Menino Jesus. Eu hoje era incapaz, nem por distração, de dizer que «a direcção do meu olhar é o dedo dele apontando». Eu era incapaz de dizer que «ele brinca com os meus sonhos» e vira uns de pernas para o ar, e põe uns em cima dos outros, e outras coisas assim. Enfim, eu era incapaz de escrever o poema hoje, e afinal isso é que quer dizer tudo.»

Defendi o poema, e as próprias frases que Caeiro nele incriminava.

«Não, não têm defesa. São absolutamente falsas. A direcção de um olhar não é um dedo: é a direcção de um olhar. Não se brinca com sonhos como se fossem pedras ou caixas de fósforos vazias. E tudo aquilo mesmo não é nada. Foi uma distracção minha e eu também existo nas minhas distracções, embora distraidamente."
Fernando Pessoa

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