sexta-feira, novembro 20, 2020

Memórias em Tempo de Pandemia - I

 


"...eu ainda creio na bondade humana."



Amanheci deprimida, gripada, triste... sem ânimo e encantamento. Anne Frank me socorre: Apesar de tudo eu ainda creio na bondade humana. Importante isso neste momento. Busco na minha história de vida fatos que, ao comprovarem a afirmação de Anne, podem reanimar-me, comover-me e até me fazerem rir. Muitos, bem distantes no tempo; nítidos, entretanto, na minha memória. 

 
Início dos anos 80, chegava eu em Santa Maria, com filhos pequenos, sem conhecer o trânsito e os colegas da UFSM. Vinha com diferentes e difíceis problemas a resolver. Naquele tempo, conseguir um telefone fixo era quase impossível em pouco tempo - celular, nem existia. Eu necessitava  trabalhar, levar meus filhos ao Centenário e à natação - e ainda levar um deles à fisioterapia, ao médico e ao terapeuta. Precisava muito de telefone. Uma noite, cansada e angustiada, escrevi uma longa carta ao gerente da  Companhia Telefônica, onde eu relatava minha situação. Entreguei-a, na manhã seguinte,  para a secretária dele, dizendo a ela  que não aguardaria uma resposta - queria somente a certeza de que a carta seria lida. Hoje penso que minha tristeza e meu abandono devia ser comovente. Sobrava-me , no entanto, coragem e vontade de acertar. Esperei. Menos de 10 minutos, apareceu o gerente com minha carta na mão, dizendo que meu meu telefone seria instalado imediatamente. Agradeci e acrescentei que meu vizinho de apartamento aguardava instalação há mais de ano - e seria injusto com ele essa prioridade. No outro dia, ao retornar da UFSM, encontrei meu telefone instalado...e o do vizinho também. 




No Mato Grosso do Sul, fui, durante cinco anos, consultora e assessora da SEC/MS e da UFMS em programas de formação de professores para educação indígena. Ao retornar das aldeias, costumava esperar algumas horas, no aeroporto de Campo Grande. Usava esse tempo para escrever aos familiares e amigos distantes. Comprava  cartões e selos ali mesmo. Uma noite,  pus todos os cartões na caixa de correspondência e fiquei com os selos na minha bolsa, dentro de um envelope. Por acreditar na Humanidade, relatei à pessoa do correio,  no lado externo do envelope, o que havia acontecido. Pedi que colasse os selos nos cartões e pusesse-os novamente na caixa coletora. Eram quase 20 cartões....todos chegaram aos destinatários devidamente selados.



Ao entrar num trem, em Paris, pedi a um senhor que me ajudasse a erguer minha mala, que, por eu estar retornando de uma viagem longa, devia estar mesmo com mais de 20 quilos. Ele ,muito tranquilo e educado, respondeu-me que não me ajudaria, porque eu precisava aprender a   levar  bagagem que eu  pudesse carregar sozinha e  precisava também aprender a não molestar pessoas com escolhas que eram unicamente minhas. Senti vergonha. Dei-lhe razão. Ri depois, quando me lembrei de haver lido que muitas vezes é um pontapé na bunda que nos empurra para frente. Valeu a lição. Controlo o peso da mala e penso que não há carrinhos ou carregadores. Aceito ajudas, mas não as peço. Passados alguns anos, aprendi a viajar com bagagem muito pequena. Atualmente viajo somente com bagagem de cabine.



Sinto-me um pouco idiota, como se escrevesse no Meu Querido Diário. Resfriado, gripe e chuva justificam a vontade de escrever reminiscências...Melhor voltar  a ler Fernando Pessoa, de onde transcrevo:

" Há grandes lapsos de memória,
Grandes parábolas perdidas,
E muita lenda e muita história
E muitas vidas, muitas vidas.

Tudo isso, agora que me perco
De mim e vou a transviar,
Quero chamar a mim, e cerco
Meu ser de tudo relembrar.

Porque, se vou ser louco, quero
Ser louco com moral e siso.
Vou tanger lira como Nero.
Mas o incêndio não é preciso."

Fernando Pessoa


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