quinta-feira, março 23, 2017

Cultura Gaúcha: Ritual de Visitas


                                                                     Bela União - todas as fotos

Com ensino, pesquisa e extensão,  atuei em meio rural, principalmente com formação de professores para áreas indígenas e para áreas de fronteira, por mais de 30 anos. Convivi com a realidade de professores leigos, e/ou com classes multisseriadas, ou com o isolamento de escolas bem distantes de centros urbanos. Desenvolvi projetos em seis estados brasileiros e  busquei informações em cinco países de área de fronteira. Realidade dura em lugares lindos.




Fui bastante próxima das comunidades e das famílias - fiz amigos de quem lembro com carinho e saudade. Difícil  separar educação e cultura. Difícil pensar em processos educativos sem considerar a cultura do grupo com que se trabalha. Impossível excluir cultura de qualquer lugar que se visite. Já escrevi que um viajante precisa ter olho limpo para perceber as nuances culturais de diferentes grupos, sem comparar ou sobrepor imagens. Comparações limitam o olhar - muitas vezes disse isso a meus alunos.




Estando agora, por um mês, em casa, na região da fronteira do Rio Grande do Sul - alegretense eu me considero - voltei a pensar sobre aspectos bem particulares da cultura gaúcha, no meio rural em que vivi, localizado entre Rosário do Sul e Alegrete, nas vizinhanças do Uruguai e da Argentina. Optei por escrever sobre o ritual de visitas, que tanto me impressionava na Bela União, antiga propriedade da minha família, lugar onde nasci e onde vivi até 15 anos de idade.





Visitas de parentes ou de amigos consolidavam laços interpessoais e aprofundavam vínculos afetivos. Possibilitavam  troca de informações, relatos de novidades e até confidências e comentários da vida alheia. Caprichavam-se nas roupas, tanto de quem recebia quanto de quem visitava. Arrumava-se a casa para dar boa impressão aos visitantes e desenrolar com bons modos o ritual todo - da chegada à partida.





Os visitantes usualmente chegavam aos domingos, pela manhã, se morassem um pouco longe; ou pela tarde, se fossem de vizinhos de perto. Eram recebidas pelos donos da casa - na falta deles, por algum adulto. Posteriormente, as crianças eram chamadas para dizer adeus - ou dar adeus - aos visitantes. Se fosse inverno, um licor de frutas, caseiro, era servido. Logo depois, fosse calor ou fosse frio, servia-se o chimarrão, que a pessoa tomava e devolvia a cuia, sem agradecer - o agradecimento significava que não queria mais mates.




Lembro-me que, após o chimarrão, vinha o momento em que se levavam as visitas para mostrar o jardim, a horta, o pomar ( arvoredo) e até alguns animais domésticos. Ofereciam-se mudas de plantas, sementes, algumas frutas - em pequenas quantidades, com elegância, para ser gentil, pois não se tratava de matar a fome de ninguém : muitas vezes ouvi essa explicação também na troca de presentes.





Ao retornar desse passeio ao entorno da casa, se fosse à tarde, servia-se  o café, sempre acompanhado de pães caseiros, roscas de farinha de milho, bolos ou bolinhos. Manteiga, mel,  geleias e queijos eram parte desse simples café, que se prolongava bastante, pela comida, que era muita, e pelas conversas bastante animadas.




Tenho bem presente a lembrança do pós-café. Os homens iam para mangueiras ou galpões ver as novidades agropecuárias, e às mulheres, mostravam-se álbuns de fotografia ou compras recentemente feitas na cidade. As conversas adultas aconteciam nesse momento. Era a hora em que as crianças saíam a correr e a brincar.




Nas despedidas, as visitas recebiam algum presente, que podia ser abóboras, mandiocas, batatas, verduras, frutas ou até mesmo charque ou linguiça. Não sei por quê esses presentes maiores eu os chamava  de presentes para estreitar relacionamento...Não sei se era desejo meu de conviver com a pessoa ou uma certa mesquinhez infantil. Sou mais pela mesquinhez - visitas me pareciam opressoras. Era bem mais divertido brincar com minhas irmãs, ainda que fizéssemos às vezes maldades umas para as outras....




Um dia talvez eu escreva sobre rituais de visita em comunidades bem diferentes da minha. Recordo-me, por exemplo, que, em alguns lugares do interior do Mato Grosso, assim que a visita chegava, perguntavam se ela queria tomar  banho - oferta divina naquele calorão! Acostumei-me, por isso , a carregar um vidrinho com shampoo na bolsa. 



Alguém lembra de simpatias para que a(s) visita(s) não demorasse( m ) ? A pequena e fugaz lembrança que tenho disso, faz-me crer que nem toda visita era bem-vinda. 




quinta-feira, março 16, 2017

Fernando Pessoa : Adiamento




"Depois de amanhã, sim,só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
.............................................................................



Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo:
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...




Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-se toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semanada minha infância...
...........................................................................................................................



Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.



Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã....
Sim, talvez só depois de amanhã
O porvir....
Sim, o porvir...

Fernando Pessoa




Que o depois de amanhã seja intenso e bonito como o amanhã....e como todo o fim de semana. 

segunda-feira, março 13, 2017

Sugestão de Roteiro de Viagem 05: Andaluzia - 3a.parte

                                                       Andaluzia : proximidade de Jaén


Nesta minha terceira sugestão de roteiro pela apaixonante Andaluzia, indico-lhes um passeio que, se incluir Granada, pode ser feito em torno de oito dias, dependendo - é óbvio -  do meio de transporte e do estilo do viajante. Incluo, nessa sugestão, Granada, Úbeda, Baesa e Jaén + um almoço num povoado de Las Alpujarras e um olhar atento aos campos de oliveira.


                                                                Úbeda :  Centro Histórico

Em Granada, já relacionamos, em postagens anteriores, alguns de seus cantos e encantos, começando sempre pelo maior deles, por Alhambra. Hospedar-se em Granada e fazer um bate-e-volta, de ônibus ou de carro, às gêmeas Úbeda e Baesa, Patrimônios da Humanidade pela UNESCO, é bem interessante - mas saia de manhã cedo e volte à tardinha, com luz suficiente para admirar a beleza dos campos com enormes plantações de oliveira.


                                                                 Andaluzia - Úbeda

Fui a Úbeda de ônibus.Essa pequena e linda cidade está encravada entre os vales dos rios Guadalquivir e Guadalimar. Comecei meu roteiro pelo Hospital Santiago, principal expoente do Renascimento Espanhol, cuja aparência não lembra um hospital, lembra sim um palácio ou fortaleza. Construído entre 1562 e 1575, é hoje um bonito Centro Cultural, com espaços para exposições, feiras e congressos. À frente dele, uma bela torre com detalhes coloridos.


Basílica de Santa Maria em Úbeda

Depois do Centro Cultural, percorri praças e ruas, observando  palácios e casas da aristocracia, que mostram o interesse pela autopromoção e a pompa dos fidalgos e senhores, com destaque para  o Palácio de los Marqueses de la Rambla, o Palácio de los Condes de Guadiana, a Casa-Palácio del Deán Ortega e o Palacio Vela de los Cobos. Visitei a Basílica de Santa Maria e a Praça Central. Em tudo, a influência conjugada de árabes, judeus e cristãos tanto na cultura, quanto na magnífica arquitetura. Com 36 mil habitantes, a pequena-grande Úbeda faz jus ao seu lugar na lista da UNESCO.



Catedral de Jaén

Jaén é o maior produtor mundial de azeite de oliva. É tão bonita a cidade quanto seu entorno. O privilégio de habitá-la pertence a 120 mil pessoas. Está localizada ao pé do Cerro de Santa Catalina, nas proximidades do Castelo, uma fortaleza moura que ocupa o ponto mais alto da cidade. Suas estreitas ruazinhas são realmente encantadoras.

A cidade de Jaén vista do Cerro de Santa Catalina

A Catedral de Jaén - construída como tantas outras no lugar de uma antiga Mesquita - está localizada, no coração do centro histórico, na Praça de Santa Maria, de onde domina o cenário. Grandiosa e imponente, essa igreja foi concluída no século XVIII e nela podem ser observados muitos traços do barroco tardio, embora predomine o renascimento em sua fachada e nos seus interiores. Uma boa compra na cidade é mesmo azeite de oliva em diferentes e bonitos recipientes.


A Catedral parece maior do que  Jaén

Baesa - junto com Úbeda Patrimônio Mundial desde 2003 - é um dos núcleos renascentistas mais importante da Espanha. Esta distante de Granada 145 km  e de Úbeda, 10 km. A Catedral renascentista de Baeza está localizada na Praça de Santa Maria, onde também se encontra a Fonte de Santa Maria. Foi sede do bispado de Jaén durante alguns anos, no século XIII .


                                                         Centro de Baeza - Fonte dos Leões

Como muitas outras catedrais e igrejas famosas, ela foi construída no lugar onde havia uma mesquita. A Fonte de Santa Maria divide a Praça - também de Santa Maria - entre a Catedral e o antigo Seminário de San Felipe Neri, onde hoje está a Universidade Internacional de Andaluzia Antônio Machado - magnífica e tradicional na região.


Ruazinha de Baeza

Em Las Alpujarras, viveram árabes e judeus - hoje muito poucos na região. O que se chama de Las Alpujarras, é um conjunto de vales, com 70 km de comprimento, onde se encontram muitas aldeias brancas, parecendo oásis, já que estão rodeadas por encostas áridas, pedras imensas, profundas fendas, bosques e riachos - riquíssima diversidade! 


                                                     Povoados em Las Alpujarras

Muitos estrangeiros transitam atualmente por essa região, que foi colonizada por bérberes, nos séculos 10 e 11. Foi também uma grande fazenda onde se criavam bichos -da-seda para abastecer as oficinas da cidade de Almeria. Depois da conquista da região por Fernando e Isabel - 1492 - a indústria definhou, e muitas aldeias foram abandonadas. Árabes e Judeus viviam por aqui.



Orgiva - Las Alpujarras


Minha meta era passar o dia em Orgiva. Com seus 6 mil habitantes, é a principal cidade do oeste de Las Alpujarras. Tem um centrinho interessante, onde estava um antigo castelo, transformado hoje no prédio da prefeitura, e onde está uma igreja construída sobre uma mesquita do século 16. Todas essas pequenas são conhecidas pela deliciosas comidas que servem - e o café também e bom.



                                                                                              Jaén

Este roteiro pode ser ampliado, chegando-se até Almeria....ou passando para Marrocos, país que está bastante próximo. A bonita Antequera pode também ser incluída, bem como as praias mais famosas do Sul da Espanha. E para quem se interessa por História e Literatura, Andaluzia é lugar de valioso aprendizado - aqui Lorca viveu e aqui ele foi assassinado.


Universidade Antonio Machado



quarta-feira, março 08, 2017

Oito de Março de 2017

Cavalinhos de Tarquínia



"O que me doi não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão....


Taormina - Sicilia

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.



Padova

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma, 
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma."

Fernando Pessoa



Verona

sexta-feira, março 03, 2017

Sugestão de Roteiro de Viagem 04: Andaluzia - 2a.parte

Málaga :Arte em espaços públicos - Henry Moore

Andaluzia é minha paixão na Espanha; Granada, minha paixão na Andaluzia. Cidade que me encanta e comove e para onde sempre retorno. Para tentar compreender a história espanhola, incluindo  encontros e desencontros entre árabes, judeus e cristãos, é relevante ir a Granada com tempo disponível e olho limpo  - assim será possível  desvendá-la ao menos parcialmente.



Granada - Alhambra

De trem ou de ônibus, enfrento mais de 4 horas de viagem, pois  são 467 km de distância. Costumo partir de trem desde Madrid por Atocha ou de ônibus pela  Madrid Estación Sur -  uma grande e moderna estação rodoviária. Chega-se a Granada numa estação rodoviária bem menor, mas com escadas rolantes, banheiros muito limpos e boas cafeterias.. As passagens de ônibus, eu as compro no www.alsa.com 



Detalhe do Centro Histórico de Granada


Em Granada, hospedo-me no Hotel  Navas, um três estrelas honesto, localizado numa rua peatonal com muita oferta de cafeterias e restaurantes. A partir do Hotel, acesso, com facilidade, as praças Carmen, Rib-Rambla, Universidad e Santa Ana;  a majestosa Catedral de Granada, a Capela Real onde estão  Isabel e Fernando, Joana e Felipe - a história trágica de Joana pode ser conhecida em :  http://rainhastragicas.com/2013/04/05/juana-la-loca-de-amor/ 





                                                           Detalhe da grandiosa Alhambra

                               
 " Certamente ninguém esquece  a primeira vez que vê Alhambra, assim como é impossível vê-la toda num dia só. Parti,  já pensando em voltar. Os sultões que a mandaram construir , usaram não só mármore, pedras, areia , azulejos, mas também aromas, luz , cores,  água. Todos os detalhes parecem ter sido esteticamente escolhidos. Quanto de fantasia transformou-se em realidade neste lugar. Quanta dor se viveu aqui....." http://correndomundo.blogspot.com.br/2015/05/alhambra-olhos-de-verolhos-de-chorar.html    OBS. Os ingressos para a imperdível visita a Alhambra podem ser comprados com antecedência no site https://www.alhambra.org



Ruazinha do centro de Granada



O poeta Francisco de Icaza, considerando as belezas de Granada , escreveu:

"Dale limosna, mujer,
que no hay en la vida nada
como la pena de ser 
ciego en Granada."


                                                                Catedral de Málaga

Em uma das minhas idas  a Granada, segui depois para Málaga, capital de Província, com cerca de 600 mil habitantes e vida cultural intensa. Nela nasceu Pablo Picasso,  admirável e inovador artista. Picasso nasceu em uma casa na Plaza de Merced, em 1881. Assim que cheguei, fui visitar o Museu que leva seu nome e que tem um acervo de 204 obras suas. Visita recomendada! Vale conferir em: www.museupicassomalaga.org Antônio Banderas também nasceu em Málaga, no dia 10 de agosto de 1960.


                                                                           Málaga

Escrevi no correndomundo"Os moradores de Málaga - os malagueños - podem orgulhar-se  de sua história de força e coragem, demonstradas antigamente, nas batalhas e , modernamente, nos pontos de vista que eles defendem. Resistiram até 1487 aos exércitos invasores cristãos e também,durante a Guerra Civil Espanhola, enfrentaram os fascistas de Franco - quando centenas de nacionalistas foram assassinados. Há pouco, fizeram fortes manifestações contra os efeitos negativos do turismo." Málaga
é importante cidade no roteiro de quem se interessa por arte e história.

Ronda

De Málaga, fui a Ronda, belíssima cidade integrante dos Pueblos Blancos, cidade-berço das touradas. Com menos de 40 mil habitantes e com 744 metros de altura, era a preferida de Alexandre Dumas, Ernest Hemingway, Rainer Maria Rilke e Orson Welles. Está situada à beira de um desfiladeiro de 100 metros, por onde passa o rio Guadalevin. Obs. Sobre os Pueblos Blancos, sugiro o post: http://www.viajenaviagem.com/destino/pueblos-blancos


Ronda

Entre os  principais pontos de interesse de Ronda, que podem ser vistos em um dia, destacam-se a Igreja de Santa María la Mayor, a Casa do Rey Moro, o Museu de Ronda, os Baños Árabes, o Museu Lara ( interessante pelo mix que abriga ), a Praça de Touros, o Museu Taurino e suas estreitas e encantadoras ruas. Fora da cidade antiga -  extramuros - é interessante  visitar o Bairro São Francisco, onde antes havia um cemitério muçulmano. O Bairro teve sua origem num pequeno mercado, no século XV, por decisão de nele morarem os mercadores que se negavam a pagar altos impostos para comercializar seus produtos na cidade amuralhada. 


Ponte antiga sobre o rio Guadalevin

Há bons restaurantes em Ronda, onde se pode  encontrar rabo de Toro - o nosso conhecido espinhaço, tradicional no Rio Grande do Sul. Uma leitura interessante pré-visita pode ser o romance Morte na tarde, escrito por Ernest Hemingway, em 1932. Nessa obra, Hemingway expressa sua grande paixão pelas touradas e narra, com detalhes, o medo e a tensão que a Praça de Touros provoca. Ronda é visita que eu sugiro sem medo de errar.



Para este roteiro, sugiro o mínimo de uma semana. Locar um carro seria o mais aconselhável. Fiz, entretanto, muitos recorridos pela Andaluzia de trem ou de ônibus. Na próxima  sugestão de roteiro, relatarei viagens a partir de Granada, traçando outra direção e percorrendo  Antequera, Jaén, Úbeda, Baeza e parte da Serra Nevada. Em junho próximo, penso ir de Huelva até Almeria, ampliando meu conhecimento da região. Conto , para isso, com ânimo e encantamento.


Prefeitura de Granada