segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Planejamento: tempo, meio de transporte, destinos e estilo de viagem


Escócia - Edimburgo
Com alguns anos de ensaio-e-erro, parece que aprendi a planejar minhas viagens. Esclareço - por ser fundamental  -  que pertenço  ao grupo  dos que viajam porque optaram por viajar e , para tanto, precisaram  abrir mão de outras possibilidades, como, no meu caso,  trocar de carro, fazer reformas na casa, mudar a decoração, comprar  roupas e acessórios além do estritamente necessário. É uma escolha minha , com total respeito às pessoas que fazem opções diferentes.

Glasgow

Fala-se, atualmente,  em turismo religioso ( Aparecida, Roma, Jerusalém...) . turismo de compras ( Rivera, Miami, Brusque...), turismo de catástrofe ( em New Orleans, contaram-me quanta gente esteve lá para ver o desastre causado pelo furação Katrina , em 2005 ) , turismo de aventuras ( com muitas atividades impróprias para minhas condições físicas ), turismo para terceira idade e turismo de assombrações ( dois que me assustam ... ) e outras tantas abordagens e enfoques.


Tallin - Estônia

Felizmente  tenho certa clareza do que prefiro, do que rejeito e do que me é indiferente em relação a estações do ano, meios de transporte, destinos, estilos de viagem. Poucos são os países que declarei : visitei e não preciso mais voltar! Usualmente gosto de retornar muitas vezes aos mesmos lugares. Alguém pode fazer uma estimativa de quantas vezes  visitei Praga, Cracóvia, Budapest, Verona, Segóvia...?

Berlim

Também qualquer conversa rápida me convence de que é imprescindível ir a um determinado lugar. Gugu, meu filho,  fala que sou curiosa - desejo sempre saber o que há dobrando a esquina, do outro lado do muro, da colina, da montanha ou da moita...e vou atrás...Já entrei em frias por essa minha curiosidade. Uma vez, após visitar uma cidade que detestei, eu escrevi:

Bruxelas

" Penso que todos nos conhecemos um tipo de pessoa " liquida prazer" - se o assunto é literatura, indica um livro esgotado que só ela leu; se é cinema, um filme de arte, raro,que poucos viram; se é viagem ,fala do lugar que ninguém foi....O miserável que disse ser ( a cidade) uma maravilha ou pensou que ninguém ia conferir ou tem um romance lá....daqueles que faz de qualquer lugar um paraíso....Voltei  (...) ao final da tarde,  gripada, cansada, com frio e P da cara!..."


Bath - Inglaterra


Voltando aos requisitos para o planejamento, quanto às estações do ano, para mim é  facinho,facinho...Gosto de todas, com suas vantagens e desvantagens.        No meu mundo mais-que-perfeito, só haveria, entretanto, primavera e outono. Embora goste mesmo de neve em fotos e montanhas distantes, já fiz viagens belissmas no forte do inverno, por exemplo, nos Estados Unidos, Canadá, Áustria, Suiça...No verão, por vezes, o calor pode ser muito forte, como experimentei em Varanasi ( 44 graus).  Neste ano, devo enfrentar o forte calor do verão de Madrid. Como morei em Alegrete e Santa Maria, tempo quente não me assusta mais.


Stonehenge - Inglaterra

Quanto aos meios de transporte, sei bem de que gosto. Gosto de trem! Tanto pode ser um desses modernos, de alta velocidade, quanto um daqueles lerdos e barulhentos, mas que nos permitem até fotografar a paisagem e conversar com os vizinhos. Cansei um pouco das viagens noturnas que eu fazia para aproveitar os dias, quando meu tempo estava vinculado às férias. Em janeiro deste ano, viajei de Praga a Milano, à noite, em cabine para duas pessoas, com a finalidade de proporcionar ao meu neto essa experiência, que era  nova para ele.


Da esquerda para a direita, o segundo é o meu irmão...

Uso transporte aéreo apenas para trechos longos. Detesto avião. Tenho medo. Difícil acreditar, mas é verdade - e tanto faz ser  uma Kombi Voadora quanto um Airbus ultramoderno ... igual tenho medo   Para trocar de Continente, não tenho alternativa, já que me falta paciência para Cruzeiros. Mesmo trechos internos, quando longos - 10h ou mais de trem  - a alternativa é enfrentar o medo , tomar um rivotril e... voar...


Irlanda do Norte - Belfast

Em junho próximo, planejo um largo recorrido pelos Pueblos Blancos, na Espanha. Para isso , precisarei fazer a maioria dos trajetos de ônibus, já que muitos dos Pueblos não são alcançados por outro transporte, considerando que tenho receio de dirigir em montanhas. Os ônibus, na Europa, são bem mais econômicos que os trens. Ronald, meu marido, gostava de dirigir. Fazíamos nunca menos de 8 mil km por ano, pelo interior dos Estados Unidos. Para este ano, portanto, avião, trem e ônibus somente. http://www.ppsmil.com/pueblos-blancos-de-espana-parte-6-47926.html


Lituania

Como tenho disponibilidade de tempo, melhor fixar-me alguns meses num único país e, a partir dele, fazer viagens para os destinos selecionados. Assim como no ano passado, a base escolhida é a Espanha. Já que detesto malas, posso deixar a minha em Madrid e viajar somente com bagagem de mão. Além dos Pueblos Blancos, devo rever algumas cidades da Andaluzia e outras do País Basco, como San Sebastian, escolhida como Capital Europeia  da Cultura para 2016. O  interior da França e da Bélgica, bem como o Leste Europeu e a Escandinávia, devem voltar ao meu roteiro - contarei assim que o definir.

Cardiff - País de Gales

Tenho preferência pelas cidades menores, onde gosto de ficar vários dias, de observar as pessoas e e de ver como elas vivem e se movem, de fazer compras no supermercado, de me aproximar, o máximo possível da realidade local. Leio muito. Assisto a filmes. Participo dos eventos locais.  Levo a vida simples que levaria em minha casa - sem pressa! Com rapidez, já me bastam o passar dos anos...


Bruges - Bélgica

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
A par disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

Fernando Pessoa

Beijing - China

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Fernando Pessoa - para o fim de semana...

Suiça -  Zurich

"Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair.
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...




Espanha - Barcelona

Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz  não,
Não sei porquê - eu não tinha medo -
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...




Bélgica - Bruges

Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo  que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...



Hungria - próximo a Budapest



Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!




Alemanha - Margens do Reno

( Quem crê que há Santa Bárbara,
julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)




França -  Paris

( Que artifício!  Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara? ....Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos... 
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade.
E saúde em existir
Das árvores e das plantas! )




Dinamarca - Copenhagem

E eu, pensando em tudo isso,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega."

Fernando Pessoa


Itália - Lago di Garda



Desejo-lhes um bom fim de semana - com menos calor e chuva mansinha...

terça-feira, fevereiro 23, 2016

Correndomundo para onde?

1983 - Formação de professores-índios em Roraima
Hora de planejar e consolidar roteiros. Abro meu  baú de viagens  - um baú mesmo! - e  analiso mapas, observo distâncias, relaciono espaços e tempo disponível, calculo os custos e os benefícios e revejo motivações e expectativas.

1980 - Iolanda e eu nos Estados Unidos

No baú, além de revistas, recortes , anotações e guias de viagem, encontro fotos antigas, a maioria delas ainda em papel, por preguiça minha de escaneá-las. Sempre que faço essa revisão, jogo fora muito material relacionado a lugares que não mais me interessam ou que me faltará  condições de visitá-los outra vez.


1998 - Cusco - Peru
As fotos aqui postadas foram escolhidas a partir de um único critério : que fossem anteriores ao começo do meu blog - anteriores, portanto,  a 2006. Pretendia organizá-las cronologicamente - mas minha preguiça impediu que assim fossem.


1995 - Lago di Como - Itália

Em abril próximo, Correndomundo completará DEZ anos. Foi um blog que começou muito timidamente, apenas para dar notícias à minha tentacular família. Tenho planos para comemorar esse aniversário - com a publicação de um livro sobre viagens e ...muitas viagens, é óbvio!

Passeio pelo Danúbio - 1994

Nessa procura de material antigo, encontrei na Revista Viagem e Turismo, publicada em dezembro de 2013, um pequeno e interessante texto de Cristóvão Tezza, de onde transcrevo, a seguir, um parágrafo, que o dividi em duas partes.

Ilhas Canárias , Tenerife, 1995

" ...por mais digital que tenha se tornado nossa vida, viajar continua sendo uma atividade essencialmente analógica - é preciso ver o mundo, fisicamente, de outro ponto de vista. Viagens mexem com tudo: transformam a cabeça, quebram convenções, relativizam hábitos, abrem caminhos...




2004 - Slovakia, Bratislava, Castelo.

...E, mesmo sob as condições extremamentes seguras das viagens de hoje, resta sempre nelas uma margem de risco, um certo deslocamento da "" zona de conforto "" do nosso dia a dia, que é justamente o charme de sair da toca."




1998 - de trem, pelo Peru

Quando eu era aluna do Curso Normal, no Instituto de Educação Osvaldo Aranha, em Alegrete, ainda nos anos 60, ouvi da Professora Irlê Fagundes Salomão uma afirmativa que me marcou muito, talvez porque correspondesse à minha intuição. Ela disse : A melhor forma de aprender geografia é com os pés...caminhando. Segui a prescrição...


1992 - Viena

Conheço bastante bem o Brasil - só não estive em Palmas e no Amapá. Como faço até hoje, começo pelas cidades grandes e continuo percorrendo o Estado ou o País até as menores cidades e os minúsculos povoados - neste ano, devo percorrer pequenos e distantes povoados, a maiores deles em montanha, de dois países já bem meus conhecidos.


1982 -  Fermo, Itália.

Em 1999, depois da aposentadoria na UFSM, trabalhei, durante um ano, na Universidade de Passo Fundo. Foi uma experiência excelente ( obrigada, Rosana ) .Além do ambiente ótimo da UPF, eu tive a oportunidade de conhecer detalhadamente a região.  Morei na Fronteira e na Região Central. Moro no Litoral e, fora isso, trabalhei em dezenas de municípios gaúchos.Posso, sim,  dizer que conheço o Rio Grande do Sul.


1997 - Andorra

Sinto-me em dívida comigo mesma e com a América do Sul. Não conheço a Colômbia e o Equador. Como eu tive o privilégio de pesquisar sobre Educação e Linguagem em Área de Fronteira,  durante muitos anos,  junto com Luiz Ernesto Behares - seguramente um dos mais consistente pesquisadores desse tema - pude ver e rever os países vizinhos e conhecê-los com mais detalhes.


2004 - Munique, Alemanha.

Neste momento, estou  elaborando a continuidade do roteiro de  2016, Cada vez aumento mais o tempo de permanência em cada lugar - por velhice e por necessidade de aprofundar conhecimentos. Viajar continua sendo um intenso exercício de memória e concentração. Estudo para elaborar o roteiro; estudo detalhadamente os lugares a serem visitados e, posteriormente, reviso minhas anotaçoes para escrever. 


1995 - Marrocos

Organizadamente, faço isso há quase 10 anos...os 10 anos do Correndomundo. É justo, pois , que este blog tenha um aniversário bem festejado, e que eu tenha uma profunda gratidão às pessoas que o lêem e me estimulam a continuar a escrevê-lo.


1998 - Lago Titicaca 

" Quanto mais diferente de mim alguém é , mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade.  Fernando Pessoa

Gugu, um Santo Vivo e eu em Varanasi, Índia.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Sobre Literatura, Lugares, Diferenças e Evolução, por Paulo de Tarso Menini Trindade




Valeria é o amor da minha vida. Estamos juntos há 18 anos, casados há 13. Amor de verdade, não paixão frívola de adolescente, amor do tipo que evolui e muda junto com a gente. Uma das muitas coisas que nós temos em comum, e que nunca mudou, é a obsessão por livros. Sempre lemos muito e temos longas conversas sobre livros e autores. Este texto é extraordinariamente longo,  como eu normalmente não escrevo, graças àquela conversa com a Valeria, que deveria ter sido uma conversa rapidinha para informar que eu estava de volta ao mesmo universo dela. Tornou-se, no entanto, uma conversa longa sobre literatura, que só terminou porque a aeromoça fez cara de desespero para que eu apagasse o celular.





Outro amor da minha vida é a minha mãe. Ela tem sido minha mãe toda a minha vida, desde antes de eu nascer, mas ela ainda consegue me surpreender. Quando ela esteve aqui na última vez, estávamos falando da alfabetização do meu filho, e ela disse que "a leitura e a escrita são processos arcaicos e trabalhosos, pouco eficientes. Comparando com todas as maravilhas de comunicação e entretenimento de hoje, leitura e escrita são atividades que dão muito pouco retorno pelo esforço envolvido". Eu Fiquei de queixo caído com o que ela tinha acabado de dizer. Eu esperaria encontrar um comentário assim, acertado, incisivo, fatual e desapaixonadamente iconoclasta, em alguma publicação de tecnologia de vanguarda, tipo a revista Wired ou algo publicado pelo MIT, mas não saindo da boca da minha mãe.






Enquanto eu estou escrevendo isso, meu filho me interrompe para mostrar o filme que ele fez com o iPad, começa com a nossa casa sendo atacada por uma nave espacial, seguido por uma luta de espadas de luz dentro do quarto dele. Não é uma coisa que está só na cabeça dele, é um filme na tela, com imagens da nossa casa, mais efeitos especiais que ele baixou da internet.  Minha mãe (para variar) tem razão, não tem cartilha escolar que possa competir com isso, pelo menos ainda não.





Voltando ao início do texto, estou em Miami e o que deveria ter sido uma ligação rapidinha para minha esposa, transforma - se em uma conversa de quase uma hora sobre literatura. O assunto foi o livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques. Uma vez eu li que se a gente olha a biblioteca de um autor passa a entender de onde vem o que ele escreve. Fora este texto, eu me esforço muito para que tudo o que eu escreva, seja preciso, econômico e direto, comunicando toda a informação necessária no mínimo possível de espaço. Eu escrevo com níveis de proficiência similares em Inglês, Espanhol e Português, mas nas três línguas o meu texto soa diferente e vagamente estrangeiro. Sim! a biblioteca de onde eu aprendi a escrever, foi a revista inglesa "The Economist".





Meu primeiro contato com esta publicação foi quando eu tinha uns 10 anos de idade e estava lendo uma revista "Senhor", deitado na cama dos meus pais,  em Alegrete. A revista semanal " Senhor" era editada por Mino Carta, recentemente retornado do exílio, naqueles princípios de democratização do Brasil. Parte dessa revista  era a reprodução de artigos da The Economist. Eu lembro nitidamente do artigo. Era uma discussão sobre a legalização das drogas e era completamente diferente de qualquer coisa que eu tinha lido. O texto era claro, razoável, direto, franco. Não tinha os floreios de estilo que dizem "olhem como eu sou ótimo". O raciocínio da revista era aberto, honesto, livre de dogmas e preconceitos, de quem realmente quer entender uma coisa a fundo e buscar soluções sensatas, em vez de  gritar bobagens em manifestação política. Era extremamente corajoso em propor e discutir ideias sem se preocupar com ofender sensibilidades nem se identificar com nenhuma bandeira ou ideologia. Eu fiquei muito impressionado com aquilo tudo, tão diferente do que eu estava acostumado a ler. O timing também era fortuito, meus pais estavam  preocupados com o uso de maconha por adolescentes. Como qualquer criança, eu entendia muito mais do que todos pensavam e eu estava ali, com um texto que me fazia  olhar o problema de frente e de uma maneira nova, tranquila e adulta.






Eu leio a "The Economist" todas as semanas, e continuo adorando a sensatez, o humor sutil, o comedimento e as tradições de uma publicação com mais de 100 anos, que a permitem continuar não só relevante, mas na vanguarda do jornalismo mundial. Uma  das tradições dela é que os artigos e as colunas não são assinados por ninguém - as colunas fixas têm um nome ficticio, e o autor vai mudando. A publicação serve ao conteúdo, não ao ego de nenhum jornalista ou colunista. Outra tradição é ser uma revista cara, que produz conteúdo excelente e não tem vergonha de cobrar por isso. Uma tradição ainda mais importante: eles assumem o fato de que qualquer publicação tem sim uma linha ideológica, e a deles é declarada desde a fundação da revista.






Os conservadores (na Inglaterra e no mundo inteiro) são a favor de que o estado não intervenha na economia, mas sim intervenha pesadamente na sociedade como guardião da moral e bons costumes. Já os liberais propõe que o estado não se meta na vida privada de ninguém e não determine se casamento é só entre homen e mulher, que ninguém pode fazer aborto ou se a maconha tem que ser proibida, mas, ao mesmo tempo, o estado sim deve meter sua mão pesada na economia, regulando e administrando as minúcias de tudo, a la Dilma Roussef. Os libertários de 100 anos atrás propunham que cada um é dono do seu nariz, o governo não precisa e não deve se meter na vida privada das pessoas, e que suas intervenções econômicas precisam ser mínimas e comedidas, e o confisco da propriedade privada (via cobrança de impostos, por exemplo) é uma medida a ser utilizada em última instancia, tomada como uma intromissão séria, e abandonada o mais rápido possível.






Ainda sobre a "The Economist", parte de ser ideologicamente claro, é que eles declaram seu voto nas eleições, antes da eleição, e explicam por quê. Na eleição do Bush e Kerry em 2004, a capa da revista onde eles declaravam seu voto mostrava fotos dos dois candidatos, com a manchete "O incompetente ou o incoerente?". No texto, depois de destroçar os dois candidatos, eles terminavam dizendo que "é por isto que, sem nenhum entusiasmo, e com um peso no coração, declaramos nosso voto ao Senador Kerry".






A conversa com a minha esposa entra no fato de que eu não gosto do Gabriel Garcia Marquez, e acho "Cem Anos de Solidão" uma chatice. Eu li "Amor nos tempos da Cólera" quando estava no segundo grau, e gostei muito. Li Cem Anos de Solidão já adulto quando eu morava em Buenos Aires. Achei toda aquela coisa do "realismo fantástico" boba, afetada, autodeferente e desnecessária. Além disto eu culpo o Gabriel Garcia Marques por arruinar várias escritoras latino americanas pelo contagio do seu estilo. O exemplo que me vem na cabeça é  Isabel Allende, mas ela não foi a única. "A Casa dos Espíritos" era um livro muito bonito, eu tinha uns 13 anos quando o li e passei uma noite inteira sem dormir não querendo largar o livro até que o sol nasceu. Depois disso, eu li uns quatro outros livros dela que eram um mais medíocre que o outro. Os personagens superficiais e manjados - um herói revolucionário de esquerda, igual aos heróis das histórias de piratas que eu lia quando criança. Ele, jovem e lindo, ama a narradora, que é uma mulher genericamente atraente, mas não muito. É um veículo em quem ambas  a autora e a leitora se projetam. Este amor, tragicamente, não pode ser realizado por culpa de um vilão, ou do próprio destino, que faz com que o herói revolucionário/pirata/herdeiro de fortuna é consumido por uma paixão imensa por sua causa/pátria/navio/empresa/coleção de tampinha de garrafa, enquanto seu cabelo compridinho balança na brisa.





Por mais que a heroína/narradora/mulher generica/projecao da leitora tenha finalmente consumado seu amor, em uma cena erótica, mas de bom gosto, sem chegar na pornografia, mas raspando perto, o amor entre eles não vai terminar em casamento e final feliz. A leitora fecha o livro se consolando que o seu marido Armandinho com a sua barriga e o cabelo rareando, não é como o herói da história, com os olhos negros profundos e o botão de cima da camisa desabotoado por causa do seu peito largo e musculoso, mas ela se casou com o Armandinho para fazer um bem para a humanidade, deixando o cara do cabelo compridinho seguir seu destino heroico. Isabel Allende pra mim passou a ser o Sidney Sheldon da esquerda latino-americana. Só muda o logotipo.





Então, no meio daquele momento em que eu estou feliz me vangloriando da minha óbvia superioridade literária, a Valeria me rebenta ao meio, dizendo uma verdade: o q tu sentes a respeito de um livro também é uma consequência do que estás vivendo e sentindo naquele momento. Talvez se eu ler "A Casa dos Espíritos" hoje também me pareça uma bosta. Talvez eu goste muito de Cem Anos de Solidão se eu me dignar a ler de novo. Dá para condensar toda a complexidade de meus pensamentos e sentimentos naquele momento em uma frase de duas palavras: "que merda!" Ela ganhou, eu perdi, agora é só firmar o tratado final, ditando os termos da minha rendição. Em vez de me sujeitar à tortura de ler o Garcia Marquez de novo, eu negocio com a Valeria para fazer outra coisa que ela me pede faz tempo :  escrever um pouco, e por isso o texto que você está lendo. Em vez de me limitar ao meu máximo de uma página, cinco parágrafos e um ou dois tópicos, eu estou escrevendo sobre tudo com abandono, e sem consideração pelo tempo da pobre pessoa que está lendo isso : você mesmo, caro leitor.






Ontem, no final da tarde, voltei de Cuba, na última mas não menos arriscada etapa da viagem, que é chegar em casa desde o aeroporto de Atlanta, um processo que, por causa do trânsito, pode demorar mais de duas horas. A parte que eu  gosto de aviões, é a oportunidade de ler e pensar sem ser interrompido nem me sentir culpado porque tem alguma outra coisa que eu deveria estar fazendo. Chego, tomo um atalho pelo meio da parte perigosa de Atlanta, e sigo com o que eu estava pensando no avião, no quanto a nossa narrativa histórica exagera a importância dos líderes que supostamente mudaram o mundo, porque no momento aquele eram as pessoas de poder, como  Winston Churchill, Getulio Vargas, Joseph Stalin, Fidel Castro e tantos outros, mas não dá importância àqueles que realmente transformaram o mundo. Fiquei pensando em especificamente dois dos três mais importantes:  Galileu Galilei, que todo mundo conhece mas ninguém sabe porquê, e Alan Turing, que menos gente conhece, mas que talvez ainda tenha o papel mais crítico que uma pessoa possa ter na história da humanidade. Veremos. O terceiro mais importante - opinião minha óbvio -  é Alexander Fleming, descobridor dos antibióticos, sem os quais quase todo mundo que está lendo este texto já estaria morto faz tempo. O autor também. Mas vamos a Galileu e a Turing, os outros dois:






Antes de Galileu se tinha certeza que um objeto mais pesado caía mais rápido que um mais leve e que o sol girava em torno da terra. Ninguém pensava muito em discordar da sabedoria prevalente, provavelmente por ignorância, preguiça, outras prioridades, medo de ser visto como diferente do resto do grupo. A mesma preguiça mental de hoje em dia e de sempre, além do incentivo extra de que os poderes da época que podiam fazer churrasquinho com quem começasse a pensar demais. Galileu foi quem disse "É mesmo? Então vamos soltar dois pesos diferentes de cima da torre de Pisa e comprovar." E os pesos tocaram o piso juntinhos, e a humanidade aprendeu a questionar, testar e aprender, em vez de acreditar que as coisas eram verdade porque um padre ou um livro dissera. E assim nasceu o nosso mundo com aviões e carros e engarrafamentos de trânsito.






Alan Turing foi um caso mais recente, e uma história triste e vergonhosa. As mudanças que Turing desencadeou no mundo ainda estão se desenrolando, e ainda podem vir a resultar muito mais profundas que as de Galileu, ou talvez de qualquer coisa na história da humanidade. Alan Turing era um gênio matemático, ele foi a peça chave em quebrar os códigos secretos da Alemanha nazista, o que deu uma vantagem decisiva aos aliados na segunda guerra. Mesmo com tudo isto, depois da guerra, Turing foi encarcerado e destruído profissional e pessoalmente por ser homossexual, e esta é a parte triste e vergonhosa. O Juiz que o condenou por ser homossexual não teve nenhuma consideração pelo fato de que se não fosse por Turing este mesmo Juiz estaria ou morto ou batendo as canelas e fazendo a saudação nazista. Mesmo assim, antes de morrer Turing fez outra contribuição, talvez maior ainda do que ele fez na  guerra. Alan Turing inventou o computador. Não um Mac ou um PC, mas os processos matemáticos que permitiram que se construissem os computadores que hoje são tão indispensáveis em nossas vidas, e que no futuro podem vir a ser a vida em si. Turing não estava tentando inventar nenhum tipo de equipamento novo, e ele não tinha como dimensionar o que ele havia feito. Ele estava trabalhando numa abordagem nova pra um problema matemático antigo ainda sem solução. O método que ele propôs era constituído de duas partes:  um conjunto de instruções que seriam executadas em sequência, repetidamente, e um mecanismo que executaria estas regras. Software e Hardware, tudo escrito, lido e reescrito em uma fita, a memória do computador. O conceito foi chamado de “Turing Machine", e o computador foi criado. Neste momento bilhões de Turing Machines, funcionando exatamente como Alan Turing as criou e definiu, estão trabalhando incansavelmente dentro do iPhone em que eu estou escrevendo este texto, que eu admito está ficando muito longo...





Estou no meio desta elucubração, passando pela parte feia e pobre de Atlanta, e vejo uma cena bizarra: cruza na frente do meu carro um maluco correndo e aos gritos. Eu freio, ele passa, segundos depois vem um policial correndo atrás dele, com sua pistola na mão. O sujeito correndo não gritava de medo, parecia mais de histérico, o policial tinha cara de guri bem comportado. Eu olhei agressivamente para o policial, ele me entendeu e colocou a pistola no coldre antes de seguir correndo. Não sei como isso terminou, mas fiquei feliz de como eu estava sendo cuidadoso. A maior parte dos acidentes de moto acontecem a menos de cinco quadras da casa do motociclista. A pessoa começa a pensar que já chegou, e relaxa a vigilancia, e um encontro com o chão ou um poste é uma distância muito pequena. Eu tomo esta estatística muito a sério e cuido não pensar que eu cheguei até que eu não estou dentro da garagem da minha casa com o motor apagado. Algocomo   não contar com o lucro de um negócio até que o dinheiro não esteja na conta e tudo 100% resolvido -  repetir sempre que encontrar uma solução e implementar uma solução são coisas muito distantes. Isso me salvou ontem, assim como me salvou muitas outras vezes. O fato de que eu estava na parte perigosa de Atlanta é consequência do trabalho de Galileu e Turing, e também da indústria de defesa dos EUA e do segundo mandato do Ronald Reagan. Eu estava lá guiado pela Ingrid.





Há muitos anos,  eu li um teste de vários GPSs portáteis, escrito pelo Barry Sonnefeld, que então era um diretor de cinema semifamoso. Ele dizia que uma coisa que faltava em todos os GPS era uma opção de "evitar o Ghetto". Eu não gostei nada daquele comentário, Ghetto tem uma conotação racista, significa "aglomeração de pessoas indesejáveis", o que no contexto dos EUA, hoje em dia, significa "lugar onde vivem os negros e mexicanos probres", um lugar não muito diferente do conceito de favela no Brasil, mas que para min com uma aparência mais triste ainda que as nossas favelas. A palavra Ghetto vem do antigo dialeto de Veneza, e significa "fundição". Veneza tinha separado uma área para criar um distrito de fundição, onde iriam se estabelecer todos os ferreiros e artesãos de metal. A ideia não colou muito, e, em 1516, a área estava quase abandonada. Quando os governantes de Veneza decidiram encarcerar sua população de Judeus, o Ghetto foi a área escolhida. Eu até sim entendo o que Sonnenfeld disse, porque a verdade é que ninguém quer estar no Ghetto, nem os Judeus de Veneza, nem os negros e mexicanos pobres dos EUA, nem eu.




A outra coisa que o Sonnenfeld dizia no artigo e que no momento eu estava de acordo, era que todos os GPS tinham que ter um botão vermelho bem grande para calar a boca da voz de mulher do GPS, para quando ela fica insistindo em fazer coisas que não dá. "Dobra à direita", e não tem como, "faz a volta e dobra a direita", quando tu estas em cima de uma ponte e tem uma fila de caminhões no sentido oposto, "eu te disse que tu tinha que dobrar a direita seu imbecil, agora pra tu aprender vou te meter por uma estrada de terra na chuva". Hora de apertar o botão de "cala a boca, sua vaca!".






Eu estava de acordo com isso, mas mudei de ideia convivendo com a Ingrid. Ingrid é o nome que eu dei para a alemã prepotente do GPS do meu carro. A Ingrid sempre tem razão. Ela está conectada à informações de trânsito em tempo real, sabe onde tem acidente, construção na estrada, tráfico lento, congestionamento. Além disto usa dados históricos de trânsito por horário, dia da semana, chuva, e sei lá eu que mais. Tudo isto ela considera meticulosamente em todas as decisões que ela toma ao gerar a rota mais rápida para eu. No começo eu duvidava da Ingrid quando ela dava umas rotas meio absurdas, tipo atalhar pelo Ghetto. Eu não seguia a rota, e depois só olhava a tela da Ingrid mostrando que meu horário estimado de chegada agora era 22 minutos mais tarde. Ela ficava quieta, não dizia uma palavra, e eu ficava imaginando a cara dela, com um sorrisinho nojento de canto de boca de quem está pensando "viu seu burro, eu tinha razão como sempre". Eu ficava sonhando com arrancá-la da tomada, deixá-la sem tela, sem voz e sem internet. Eu tinha vontade, mas, se eu fizesse isso, eu não saberia chegar a lugar nenhum, não somente porque eu tenho um péssimo senso de direção, mas também porque Atlanta é uma cidade gigante, onde nenhuma rua anda reto, e elas vão mudando de nome e outras vão copiando os nomes das primeiras. Para quem pensa que eu estou exagerando, existem 71 ruas diferentes em Atlanta que o nome é uma variação de "Peachtree" (pessegueiro).





Bom, uma viagem de dentro do hotel em Cuba até dentro da minha casa em Atlanta tem complexidades imensas. São milhões de coisas que precisam funcionar perfeito, no momento preciso. Cada vez que eu chego de uma viagem eu fico surpreso que deu tudo certo, porque existe a possibilidade muito real de que o engenheiro que estabeleceu o limite de tolerância da espessura dos cabos dos freios do trem de dentro do aeroporto de Atlanta tenha feito isto nos mesmos dias que ele estava tendo um caso com a mulher do chefe dele, o mesmo chefe que tinha que verificar que a tolerância da espessura do cabo de freio que o engenheiro estabeleceu estavam bem, mas agora porque os dois estavam distraídos por conta  da mulher do chefe, o cabo vai quebrar e o trem não vai freiar e eu vou morrer em um acidente ferroviário dentro de um aeroporto!!!




PS. Assumo ter selecionado e postado fotos de Paulo de Tarso, Valéria e Massimo - algumas junto a pessoas que nos são muito caras. As opiniões são dele; as fotos, escolhdas por mim. Mãemãe